23.10.05

Sobre cinema.Olhar de um já experiente.

A técnica é uma ilusão

“O problema da geração mais nova [de cineastas] com relação às precedentes é o fato de ter crescido em uma cultura na qual a imagem se tornou onipresente e onipotente. Banharam-se desde pequenos no universo do videoclipe e da publicidade, que não são formatos que me atraíam, pessoalmente, mas cuja riqueza visual é inegável. E por isso os cineastas estreantes têm uma cultura e um domínio de imagem muito superiores aos que seus predecessores tinham 20 anos atrás.
Mas, em razão disso, eles também abordam o cinema de uma forma que privilegia a forma ao conteúdo, e creio que chega um momento em que isso os atrapalha. De fato, creio que a técnica é uma ilusão. [...]
Há cineastas que dizem imaginar o filme inteiro em suas cabeças, antecipadamente, mas mesmo assim há muitas coisas que não se revelam, a não ser no momento, quando todos os elementos de uma cena estão montados no local de filmagem.
O primeiro exemplo que me ocorre é o do acidente de carro em "Tudo sobre Minha Mãe" [1999]. No começo, eu planejava filmar com uma grua e terminar com um longo "travelling", acompanhando a mãe em sua corrida pela rua, sob a chuva, na direção do filho agonizante. Mas acabei por repensar e disse a mim mesmo que o "travelling" era parecido com um plano que eu já utilizara no final de "A Lei do Desejo" [1987]. E por isso decidi, de improviso, naquele momento, rodar a cena de maneira completamente diferente, ou seja, como uma tomada subjetiva. A câmera filma do ponto de vista do rapaz, passa por baixo do carro e se perde no sol, e enfim ele vê a mãe correndo em sua direção.
No final, terminou sendo sem dúvida um dos planos mais fortes do filme. No entanto não foi de maneira nenhuma premeditado. Tudo surgiu de decisões intuitivas, improvisadas ou acidentais, que são a magia da filmagem. [...]

Close-up perigoso
O fato é que não tenho fetiches ou manias, na hora de rodar uma cena. Mas, nos meus dois últimos filmes, surgiram detalhes muito peculiares. Para começar, usei um novo tipo de lente, chamadas "primes", que me satisfizeram muito, pela densidade que dão às cores e, acima de tudo -o que pode surpreender- pela textura que emprestam aos objetos que não ficam em foco, no segundo plano de certas imagens.
Além disso, e isso é o mais importante, utilizei basicamente o modo "scope", com um formato de imagem muito mais alongado. O "scope" não é um formato evidente e oferece certos problemas, especialmente no caso dos planos próximos. Para filmar um close-up nesse formato, é preciso fechar nos rostos, e ocasionalmente isso se torna perigoso, porque não há como mentir. Isso obriga a encarar a questão quanto ao que se quer realmente dizer com o close-up. Os atores precisam ser bons, e é preciso que haja algo de verdadeiro naquilo que interpretam -ou a cena descamba.
Digo isso, mas poderia facilmente oferecer um exemplo inverso daquilo que estou dizendo: [o cineasta italiano] Sergio Leone [1929-1989]. A maneira pela qual ele filmava close-ups extremamente próximos em seus westerns era completamente artificial. Lamento muito, mas Charles Bronson [1922-2003], para mim, é um ator que nada exprime. E a intensidade que deriva dos close-ups de seu rosto durante as cenas de duelo é completamente falsa. No entanto sou obrigado a reconhecer que o público adora o estilo.
O exemplo oposto é David Lynch. No caso dele, embora filme certos objetos em close-up, consegue dotar as imagens de um verdadeiro poder de sugestão.
Os planos não são só impecáveis do ponto de vista estético mas repletos de mistério. A abordagem dele corresponde à minha, mas eu sou muito mais fascinado pelos atores, adoro filmar rostos, enquanto Lynch, que começou nas artes plásticas, visivelmente se interessa mais pelos objetos.”

Pedro Almodóvar.

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