21.11.05

Gosto de Cereja

MARCELO GOMES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alguns filmes têm um dom de nos entorpecer. Alguns filmes usam de artifícios caros, efeitos esplendorosos, planos espetaculares para isso. Alguns outros, e pouquíssimos, têm o dom de nos entorpecer com quase nada. Em "Gosto de Cereja", do mestre iraniano Abbas Kiarostami, é como se fôssemos hipnotizados e carregados para um mundo onde o essencial, e somente o essencial, é visível aos olhos.
A história se passa nas ruas da conturbada e caótica Teerã. Baddi , um homem de olhar triste, dirige a esmo pela cidade à procura de alguém que possa lhe fazer um favor. Essa narrativa, aparentemente simples, provocará um estardalhaço nos nossos sentimentos. Badii tem dois olhos e uma dor profunda que sai de sua alma. Um homem e a dor do mundo. Seria esse o resumo do filme.
Não existe uma história para contar. Existe uma história para ser sentida. Nada mais acontece além do que é essencial: o sentimento do mundo. Kiarostami vai à procura da simplicidade, da reconciliação com a natureza. Ele nos embaralha a cabeça, ficamos confusos. Em algum momento, já nos sentimos com a mesma dor de Badii, já estamos no meio de Teerã, procurando respostas para nossas inquietações e como ele descobrimos que, às vezes, a resposta está na nossa frente, como uma chuva que cai ou como o relampejar de um trovão.
Eu o conheci em Cannes. Conversamos e ele disse: "Gostei do seu filme, mas ele tem o mesmo problema dos meus: quase nada acontece". E eu disse: "Esse é o maior elogio que eu poderia receber". Obrigado, mestre Abbas.

Marcelo Gomes é cineasta e ganhador do prêmio da 29ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com "Cinema, Aspirinas e Urubus", em cartaz em São Paulo.

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