8.5.07

Conto antigo

José, a moça e Ele.

Num engodo, daqueles que lhe tiram o ar, José, nome vindo do pai, sacou a arma branca e cortou o pescoço.Os olhos abertos, satisfeitos ou não, anunciavam o medo da moça.O fato é que José não conteve a ira que nascia, rebentava pela superfície e lhe fazia sentir dores no peito.Foi isso, sacou a faquinha de comer e rasgou o cachaço.Agora não diz besteira.Ficou calado. O corpo de um lado e a cabeça ali, no chão de granito, no pátio do play, ao vento sereno da noite, na beira estreita do que foi e do que já não é mais.

O cigarro veio depois, amassado. O isqueiro no bolso rasgado saltou num instante.Fogo.Um trago profundo e ânsia.Veio a moça, desajeitada e gorda que era, não fazia menos que gritar.Batia também, mas José nem sentia.Então se tinha: a faca de comer, em sangue; José e cigarro; a moça e seu jeito; O defunto, repartido.O sangue secava e já fazia parte do chão, seu amigo conhecido, um lar.As cadeiras e mesas não se moveram, por isso não contam de nada.As paredes, como não ouvem, a despeito de quem ache o contrário, pareciam imóveis e insensíveis como antes.A noite escura não mudou de cor.O sol, só amanha.Restava mesmo, de imediato: a moça, José e o defunto em duas partes assimétricas.

Silêncio.A moça não grita, não bate mais.Está exausta.José não fala, nem nunca falou. É homem quieto, de poucas e raras palavras.O som que chegava da rua parecia mais nítido, confortável.Um misto de carros a passar, buzinas e só, pouco pleno.Na verdade era um carro ou outro, de vez em quando.Uma buzina, no máximo. Eis o novo formato: o novo-defunto no chão, a moça de joelhos e José, sentado. José sabia ser ele o arranjador daquele novo aspecto de vida.Pensava sereno no conteúdo da cena que lhe invadia os olhos. É certo que pensava, pois não haveria de ser de outra maneira. José sempre pensou.Pensava, pensava, pensava. Afinal era um pensador de profissão, filósofo.

Foi só.A polícia chegou.José foi pro xadrez.O defunto, junto de cada parte sua, foi pra debaixo do chão.A moça, bem, a moça saiu correndo e se jogou contra o ônibus da prefeitura, desses que transportam velhinhos.Quebrou as duas pernas e a bacia. Hoje mora no hospício regional. Cercada de flores que ela mesma planta. Cercada de gente que desconhece. Cercada de um José que corta o outro e de um Ele que não vale a pena lembrar para evitar maiores aborrecimentos.

Um comentário:

Anônimo disse...

amei!